Publicação realizada para a disciplina de Estúdio Vertical da Escola da Cidade. Com Dora Camarero, Dries van Steen e Maria Vizeu. 2024
Com a crise do clima, era de se esperar que viesse o medo. E veio, mas acompanhado de um bombardeamento de informações, tra-gédias, opiniões e catástrofes, que, somadas, geraram uma forma de apatia climática. Quando tudo se torna urgente, nada mais é urgente. Ao que parece, estamos nos acostumando com os riscos. Passamos a lidar com eles a partir da perspectiva de que são passageiros, passados, ou insuficientes para abalar o mundo como conhecemos. Mesmo com todas as evidências apontando para um futuro atravessado por catástrofes climáticas, parece difícil visualizar o desdobramento desses eventos em riscos concretos para a nossa vida na terra. Nos últimos anos, realidade e ficção vem se misturando tanto a ponto de se tornarem difíceis de distinguir, fazendo com que a imaginação muitas vezes se mostre incapaz de prever a dureza dos acontecimentos. Mas o fato é que a crise está em curso, os eventos climáticos extremos estão se tornando cíclicos e, eventualmente, farão parte de todos os nossos dias.
Em São Paulo, um dos principais riscos é o aumento da frequência e intensidade de chuvas, que se desdobram em alagamentos e inundações. A crise climática agrava também os riscos decorrentes dos nossos maus modos de urbanização da cidade, e nos sugere questionar quais problemas já estavam projetados. São Paulo é uma cidade construída sobre rios. A cidade, que passou a infância ao lado do rio Piratininga, batizada em sua homenagem, como Vila de São Paulo de Piratininga, aos poucos o esqueceu. O rio, renomeado como Tamanduateí, e a cidade, emancipada como São Paulo, decidiu-se incapaz de conviver com os cursos de água.
Decidiu sufocá-los em galerias, retificá-los e negá-los. Córregos foram soterrados, várzeas ocupadas e os rios poluídos. Portanto, a metrópole hoje sofre. Engole a insurreição dos rios, que, cada vez mais frequentemente, reconquistam suas margens de direito e aterrorizam a cidade que os esqueceu. É sobre esse revolto que escrevemos aqui: o rio Tamanduateí. Sobre as vidas nas várzeas, as rotinas molhadas, os levantes das águas. Histórias de enchentes. As pessoas que elas carregam, os prédios que elas invadem e as ruas que elas tomam.
Para selecioná-las e narrá-las, buscou-se a iconografia doTamanduateí desde a fundação da cidade até hoje, fossem pin-turas, fotografias de jornal, aéreas, de celulares ou de películas; assim como imagens da relação entre os humanos e a água que fossem relacionáveis ao nosso rio e nossa cidade. E constam aqui, no livro, todas essas imagens — mas autônomas, isoladas das histórias que delas nasceram, para que possam contar, como meios em si, as histórias que quiserem.
Entre elas, camufladas ou evidentes, estão também imagens fabricadas. Considerando o que foi representado no passado, o que se apresenta no presente e o que se imagina do futuro, foram geradas imagens com ferramentas de inteligência artificial que si-mulam, adulteram e ficcionam sobre o rio Tamanduateí. Comandos escritos geram essas imagens que, por sua vez, disparam contos. Ao navegar pelas previsões de aumento do índice pluvial para São Paulo nos próximos anos, essas representações começam a se desenvolver num encontro entre dados e imaginação, e a maioria delas é terrível. Mas analisando e estudando as imagens existentes de enchentes na cidade no último século percebe-se que a imagi-nação às vezes não supera os absurdos reais e passados. Por isso, a organização de imagens desse trabalho pretende embaralhar realidade e ficção. Também se mesclam os tempos, demostrando que muitas vezes o mais longe que enxergamos em direção ao futuro são fragmentos do passado.

Assim nasce o livro. Projeções, memórias e ficções.Prompts, fotos e sonhos traçam uma linha meandrante pelas iconografias do rio, pelas suas sete voltas e seus quarenta e três afluentes. Atestando as relações mal establecidas, vislumbrando outras maneiras, e espiando o passado para pensar o futuro. Passando pela Ilha dos Amores, assistindo o amadurecimento do rio, sentido a culpa das enchentes. Contos que se localizam entre desejo e pesadelo. A água engolindo tudo e a água mansa. A água podre e a sede de beber dela.

Back to Top